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segunda-feira, setembro 25, 2006

A cor do rio

Certo dia o rio secou abruptamente. Um dos condutores que estava em cima da ponte travou a fundo, paralizado pelo espanto, provocando acidentes compulsivos ao longo de uma cadeia de dezoito automóveis. Um ou outro barco que passava encalhou na areia húmida, coberta de algas e lodo. Durante uma hora ouviu-se a agonia dos peixes, que apesar de mortos se batiam pela vida, até que o maior e mais resistente pereceu também. Depois chegaram ao local os jornalistas e os mirones multiplicaram-se.
As pessoas questionaram-se e surpreenderam-se com o sucedido, até que, por fim, esqueceram o insólito acontecimento. E depois do leito do rio ser novamente preenchido pela água verde e opaca com que sempre o tinham conhecido nunca mais voltaram a pensar nesse dia distante em que esse mesmo leito se desenchera. E havia apenas um rapaz, de entre as dezenas de pessoas que tinham estado presentes nas imediações do rio naquele dia, que sabia o segredo daquele mistério. Confidenciou-mo dois anos mais tarde, quando finalmente o vim encontrar, no mesmo quarto com vista para o rio de onde observara tudo.
Começou por lembrar que aquele tinha sido um dia outonal, e jurou-me que um minuto antes do rio secar tinha ouvido uma gargalhada cortar o burburinho permanente da chuva a cair nas poças de água, ou nos telhados ou nos guarda-chuvas. Eu percebi que estes detalhes eram uma forma que o rapaz arranjara de disfarçar uma película de timidez com que delicadamente embrulhara o assunto. E foi ainda a medo que me descreveu uma rapariga sentada no parapeito da janela, com as pernas flectidas, os braços á volta dos joelhos e a face virada para o rio oito andares abaixo dela.
Disse que, enquanto observava a rapariga, teve sempre a vaga lembrança de ter sonhado aquilo antes. Depois contou-me como o nevoeiro lhe parecera um manto etéreo pousado sobre os ombros da rapariga, envolvendo-a naquele instante fatídico e dissertou emocionadamente sobre a forma como o sol despontou no céu nublado e, pela última vez durante largos meses, brilhou sobre o rio.
Dito isto o rapaz manteve-se em silêncio durante alguns segundos acabando por declarar que a rapariga tinha uns olhos muito grandes e castanhos – uns olhos castanhos da cor da terra, do tronco das árvores, da vida e dos sonhos sobre a vida, daqueles olhos melancólicos que se perdem facilmente por aí e permanecem à deriva, de janela em janela, nos autocarros, nos comboios, nas casas. Naquele dia de finais de Setembro o rapaz teria ficado a olhar a rapariga a olhar o rio durante muito, muito tempo, mas não me soube dizer quanto tempo seria esse muito tempo ao certo, porque naquela tarde perdera de forma misteriosa e irremediável a capacidade de distinguir as horas dos minutos. Assegurou-me que nem teria dado conta caso o sol tivesse caído sobre o horizonte e voltado a nascer. Nesse dia em particular, acabara mesmo por se esquecer onde estava e quem era.
Foi com alguma solenidade que o rapaz afirmou, por fim, ter observado a rapariga a voltar, lentamente, a sua cara para ele, mantendo as suas pálpebras fechadas e serenas até ao momento em que desceu do parapeito da janela e abriu os olhos, uns olhos muito grandes e cor de rio.

quinta-feira, agosto 31, 2006

O crime de Amália


Colheu a única rosa encarnada que crescia no meio da neve branca e calma que brilhava e rebrilhava sob o sol frio. Depois apercebeu.se do absurdo – as rosas encarnadas não crescem na neve – e acordou. Não havia neve lá fora, só uma chuva que caía na diagonal e que escorria do telhado num fio contínuo e transparente. Amália levantou-se e olhou pela janela. A estrada estava húmida, e a luz amarela dos candeeiros de rua reflectia-se no asfalto. Passavam poucos minutos das quatro da manhã. Faltam pelo menos três horas para a aurora. Amália pensou nisto e depois vestiu qualquer coisa à pressa antes de sair.

Não podia, porém, deixar de pensar como seria bonito ver rosas brotarem do meio da neve; e que nevasse em Lisboa; ou, ainda mais impossível, que crescessem em Lisboa rosas, por todo o lado, em todos os canteiros, em todos os passeios, plantadas no meio das estradas. A realidade é amarga, pensou Amália. A realidade é amarga – era isto que ela pensava quando parou diante da montra da livraria, e exposto ao centro, sem que se anunciasse o preço, Amália se deparou com um livro cujo título era Rosas no Meio da Neve.

Já só faltava um quarto de hora para as cinco da manhã. As mãos de Amália estavam abertas sobre a montra da livraria e depois aproximou também a face, aberta num sorriso quase infantil. Sentiu que precisava urgentemente daquele livro que a olhava à distância de escassos mílimetros de vidro, mas a loja não abriria pelo menos durante quatro horas. Afastou-se, olhou para os dois lados da rua, depois para trás, depois para baixo, depois para cima, para o céu e para a lua que estava escondida pelas nuvens negras de noite. Depois apanhou uma pedra, deu uns passos atrás e arremessou-a contra o vidro da montra, e dali o viu escancarar-se. Aproximou-se, pegou no livro com a mão esquerda e lançou-se rua abaixo.

Corria tão rápido como conseguia, pelo passeio do lado esquerdo. Virou à direita e depois em frente, e à esquerda, até que já se perdia e corria só por correr. Por fim, extenuada, caiu numa rua qualquer e encostou-se à parede. Começou a ler o livro com os primeiros raios de sol do amanhecer.

Às oito e meia da manhã, quando Amália passava da página 47 para a 48 passou por ela um veículo da polícia, que vinha de outras andanças. Estacionou na berma do passeio. O guarda tinha relacionado os dados. Assalto na livraria Luar às quatro e cinquenta e sete da manhã; a polícia chega ao local sete minutos depois das cinco e descobre que apenas um livro é extorquido; despreocupado um agente prepara-se para abandonar o serviço assim que chegue à esquadra e depara-se com um sujeito jovem, do género feminino sentada numa calçada e lendo compenetradamente um livro qualquer. Saiu do automóvel e dirigiu-se à jovem, pôs-lhe nos pulsos as algemas e disse:

– Está presa em nome da lei.

Amália viria depois a declarar em tribunal não que era inocente nem que o seu crime tinha outros desagravos que não aquele de que “certas emergências têm que ser imediatamente satisfeitas”.

segunda-feira, agosto 07, 2006

O atendedor de chamadas


Estás aí? Se estás atende. Por favor. Por favor! Não estás?... Deixa estar, eu digo-o de qualquer maneira.

Estou sentado na varanda, e vejo o mar ao fundo, escondido entre as telhas vermelhas que encabeçam as casas brancas, vejo o mar ao fundo diluir-se no céu. Ambos são azuis, percebes? E diluem-se um no outro...

Estou sozinho aqui. Estou sozinho porque me sinto mal e só, tanto me fazia que houvesse alguém ao meu lado ou não. A solidão não é uma evidência, é uma percepção. Podemos ter milhares de pessoas ao pé de nós e sentir-mo-nos sozinhos por causa de uma apenas.

Desculpa mas vou ter que fumar um cigarro. Importas-te? Não leves a mal, porque não é por mal que o faço. É talvez porque me sinta nervoso ou ansioso. Ou talvez seja apenas um gesto automático, irracional, o de abrir o maço de tabaco com a mão esquerda, pegar no cigarro entre dois dedos da mão direita, levá-lo à boca e acendê-lo com o isqueiro. Talvez seja instintivo o gesto de semicerrar os olhos quando sopro a primeira baforada de fumo que enevoa a paisagem por um instante e logo se dissolve no ar como se nunca tivesse existido.

Há uma cadeira vaga ao meu lado. Estou a imaginar-te ali sentada agora, os cabelos escorrendo pelos ombros como água de uma fonte, o sol dourando-te a face. O que me lembra de que estou sozinho. Esquece. Tudo me deprime. Pelo menos enquanto estiver aqui, tudo me deprime. Prefiro fugir. Vou descer para ir ao café. Ou à praia, não sei bem.

Sim, talvez já não tenha muito para dizer. Talvez a minha boca esteja seca de palavras. São desnecessárias as palavras. Estivesses tu aqui e diria que são mais do que desnecessárias, são parte de uma invenção obsoleta e trivial que só veio retirar complexidade à arte primitiva do olhar. O que eu quero dizer é que não quero dizer nada. Só olhar-te. Deixa-me olhar-te, peço-te. Nos olhos. Contemplá-los e inquiri-los, e explicar-me a eles de outra maneira... de outra maneira que agora não consigo...

Olha, já estou cá em baixo. São quatro da tarde, há muita gente a ir para a praia outra vez, vêm em grupos e conversam, riem-se de vez em quando, levam toalha aos ombros ou debaixo do braço, vestem fato de banho ou biquini, muitas vezes trazem uma sacola ou uma mochila ou algo que lhe faça a vez. Eu não gosto de praia. Nem sei porque estou aqui. Talvez tivesse a secreta esperança de te descobrir entre a multidão. Ou perder-me entre cocktails num desses bares ao pé da praia, numa qualquer noite de Verão, sempre com uma música aos berros a funcionar como anestesia.

Uma italiana faz favor. Não é contigo querida, desculpa-me. É com o empregado do café. Está um calor infernal, mas eu estou a precisar de um café. A ver se acordo. Já vamos a meio da tarde, já é tempo. Preciso desesperadamente de acordar.

Aiai...

Já chegaste?

Não?

Acho que vou ter que desligar, de qualquer maneira. Estou a ficar sem bateria. Mas foi bom. Estava mesmo a precisar disto. Eu sei que não te conheço de lado algum, mas estava mesmo a precisar disto. Sinto-me melhor, soube-me bem imaginar-te. E, enfim, quando marquei o número não sabia o que poderia vir a acontecer. Nunca se sabe.

quinta-feira, agosto 03, 2006

O último dia do presidente (parte 3 de 3)

Os militares, ou melhor, os militares que cabiam na largura da escada de uma vez, subiram até ao segundo andar, avançaram a passos largos no corredor e pararam a cinco metros da porta de entrada do gabinete de Gabriel de Menezes. O tenente-general voltou-se e disse-lhes numa voz grave, que era audível e autoritária sem ser um grito

– Agora trato eu do assunto.

Não era assim que estava combinado, pensou o coronel, mas esqueceu esses pormenores a bem da hierarquia do exército. O tenente-general, que era canhoto, retirou um revólver do coldre com a mão esquerda e pousou a mão direita na maçaneta.

Lá dentro esperava Gabriel de Menezes. Ouviu-os subir, ouviu a frase do tenente-general e permaneceu calmo. É o destino, pensou. E ele tinha de o enfrentar. Quando o tenente-general entrou, encontrou o presidente de costas para si, sentado na sua cadeira de couro. Havia uma garrafa de uísque de malte aberta e um copo vazio sobre a mesa. O auscultador do telefone não estava sobre o descanso, mas sobre a mesa. Gabriel de Menezes tinha certamente tentado telefonar quando se apercebeu de que a linha telefónica tinha sido cortada.

– Volta-te para mim. Vê-me nos olhos. Custa-te assim tanto mais do que a mim?

Gabriel de Menezes voltou-se para o tenente-general e olhou nos olhos. A calma do presidente deixou o oficial do exército completamente aterrado.

– Senta-te, por favor. Bebe um pouco de uísque.

– Não gosto de whisky.

– O que é que queres beber então?

– Não quero nada, o que é que te parece? Vim para terminar tudo, percebes, tudo! Aqui e agora!

– Se não queres nada senta-te então, por favor. Não te tomo muito tempo.

Ao tenente-general exasperava a insolência presidencial, mas ao mesmo tempo a face serena de Gabriel de Menezes levou-o a pensar que podia bem permitir ao morto um último desejo.

– Como é que está a mãe?

– Não sabe de nada. Deixei-a em Espanha, nas Canárias, achei que seria mais fácil assim. De qualquer das formas desde que o pai morreu que quase nunca sai de casa, não lê jornais, não fala com ninguém. Dúvido que acredite que estejas vivo.

– E tu como é que estás?

– Eu estou bem. Eu sei que tu não estás vivo.

Trocaram olhares.

– Hoje sonhei com um céu cor-de-laranja e soube que ia morrer.

– Tu sabias que ias morrer e sonhaste com um céu cor-de-laranja.

– Tenho a sensação de que se eu tivesse dito qualquer coisa diferente a seu tempo, tudo isto poderia ter acontecido de outra maneira.

– Tens a sensação certa,

disse o tenente-general. Disparou uma só bala. A cabeça de Gabriel de Menezes caiu sobre o tampo da mesa. O tenente-general beijou-lhe a nuca prostrada e depois saiu, devagar. Lá fora estava o impaciente coronel

– E agora general?

– Agora não sei.

quinta-feira, julho 27, 2006

O último dia do presidente (parte 2 de 3)

Em frente da fachada do edíficio era o caos. Aos guardas da casa do presidente tinha sido dada ordem para não disparar em circunstância alguma, o que facilitou a tarefa aos invasores, que até contavam com alguma resistência. O general tomou do megafone e gritou ao presidente que se ele não se rendesse em dez minutos os soldados tomariam o edifício à força e não o deixariam vivo. Ao general não preocupava a saúde de Gabriel de Menezes. Afinal de contas o que ele pretendia era uma submissão, uma admissão pública de culpa, uma transferência de poderes. Reclamava para as suas forças totalitárias uma legitimidade à lei da força. Mas a espera impacientava-o, ainda para mais com aquele calor infernal que o fazia suar tanto.

No andar de cima Gabriel de Menezes tinha a calma e a sabedoria dos que estão à beira da morte e o sabem. Percebeu que para o general passar das ameaças teria que lhe explicar que não estava disposto a entregar-se. Por isso levantou-se, abriu a janela e gritou

– Liberdade!,

um acto que havia de ser descrito durante duas décadas nos panfletos clandestinos como um apelo à democracia e mais tarde seria descrito como uma lenda infundada nos livros de história. Fechou outra vez a janela com o sorriso leve como o do orgulho de um pai à beira da morte de um seu filho. Depois pensou no seu governo, de como tudo parecia traçado desde o ínicio, desde a tomada de posse. Lembrou-se do gato azul escuro que viu da janela do automóvel em que seguia nesse dia, e como logo percebeu que iria viver para sempre a angústia dos condenados. O povo, deprimido e frustrado, via a sua eleição como mais um capítulo na história de uma democracia que lhe dava muito pouco. E tudo o que o presidente fizesse em contrário era depreciado e desvalorizado.

Lá fora acumulava-se gente. Uns poucos dos democratas mais curiosos juntaram-se à multidão anónima e fingiram-se do lado do inimigo, muitos estavam do lado dos revolucionários mas a maioria ainda que pensando estar de acordo com a insurreição, estava, em verdade, somente confusa e enganada. Quando ouviram a palavra Liberdade todos se calaram por segundos, depois os que estavam mesmo do lado da revolução gritaram injúrias. O general olhou as suas tropas caladas, olhou a grande parte de pessoas que parecia pensar no valor daquela palavra e, sentindo-se súbitamente traído pelo presidente, disse-o Filho da puta num sussurro. Ficou largos minutos sem reacção, depois percebeu que não tinha outra hipótese que não acabar rápido com assunto e fez um sinal a um cabo que deu a volta a casa para vir murmurar ao tenente-general que era mesmo para avançar. O coronel perguntou

– E agora general?

A face do tenente-general exprimiu a sua impaciência com o coronel, mas depois de dois segundos de silêncio respondeu-lhe

– Agora avançamos.

quarta-feira, julho 26, 2006

O último dia do presidente (parte 1 de 3)

Quando o vieram matar entraram pela porta das traseiras. O que os militares veriam mais tarde como um gesto de descrição vi-o o estadista como mais uma mostra de traição. Ele estava sentado na sua poltrona de couro, virado de costas para a secretária e de frente para aquela janela larga com vista para a praça. Lá fora fazia um calor tropical. O sol ardia tão intensamente que quase feria a vista. A multidão principiava a ajuntar-se à volta do edifício. Gabriel de Menezes acordou às cinco e meia da manhã, como era seu hábito, e soube logo que ia morrer. São poucos os que o podem saber de antemão, pensou, enquanto se levantava da cama. Vestiu o seu melhor fato, a sua melhor camisa, a sua melhor gravata. Preparou aquele dia com a dignidade que exigem os momentos especiais.

Apesar de tudo decidiu manter-se calmo e discreto. Não alertou a mulher, deixou-a a dormir, agarrada à sua almofada branca, sem saber o que se passava. Ficou apenas sorrindo da porta para ela durante alguns segundos. Uma das características mais trágicas, e mais mágicas também, do ser humano é esta de achar as coisas mais belas quando se aproximam do fim. Ao mesmo tempo que se guarda uma satisfação excepcional também se tem uma enorme sensação de perda.

A última refeição de Gabriel de Menezes não foi um banquete, foi um copo de leite com mel que ele bebeu sem pressas na cozinha. Àquela hora, seis da manhã, ainda ninguém tinha reparado na importância excepcional daquele dia. Aliás, se Gabriel de Menezes sabia que ia morrer era porque sabia analisar os sinais óbvios que nos são dados, como a avó lhes costumava chamar – como sonhar com céus cor-de-laranja. Não são de bom presságio os céus cor-de-laranja, e a avó tinha-lhe ensinado que os sonhos têm sempre razão, de uma maneira que nem Freud conseguiu deslindar. Por esta e outras razões lembrou-se Gabriel de Menezes da avó enquanto bebia o leite em pequenos goles. Hoje em dia a avó dependia de uma cadeira de rodas para se mover, e estava num hospital psiquiátrico, numa casa de loucos, onde sempre pertenceu, diga-se, porque nunca pensou como os outros. Mas Gabriel de Menezes preferia imaginá-la em pé ou sentada à beira da lareira, a sorrir, contando histórias tão fantásticas que pareciam genuinamente reais e ensinando-lhe que o destino não se contraria, enfrenta-se. Era o que Gabriel estava decidido a fazer quando subiu as escadas e entrou no gabinete, sentindo a calma e a clareza de espírito dos heróis impotentes.

A mulher, Maria de Menezes, acordou pouco antes das sete, atormentada pelos vozes que, lá fora, se iam multiplicando e crescendo. Afastou os cortinados de linho para ver que os homens que iam matar o marido eram muito mais do que os guardas que o protegiam. Gritaram qualquer coisa sobre rendição pelo megafone, mas da casa ninguém respondeu. Gritaram o mesmo outra vez, mais devagar e mais alto, mais perceptível também, mas ninguém respondeu. E, enquanto exigiam a rendição pela terceira vez, os militares arrombaram a porta das traseiras e entraram na casa de Gabriel de Menezes. Maria de Menezes saiu a correr do quarto, mas antes de começar a subir a escada um militar ordenou-lhe que parasse. Ela estacou, mais pela surpresa que pela ordem. Ficou a olhá-los com os seus grandes olhos castanhos cheios de incompreensão. Esboçou um movimento.

– Pare ou vai arrepender-se!,

gritou-lhe o tenente-general. Ela não parou, decidiu antes lançar-se sobre as escadas a grande velocidade e vários soldados, com os nervosos dedos no gatilho, dispararam sobre ela. Maria de Menezes morreu com a primeira bala, sem ter tempo para se arrepender como previra o tenente-general, e o sangue escorreu violentamente vermelho sobre os degraus de mármore branco. Um dos soldados, um recruta acabado de sair da instrução, que nunca tinha visto uma pessoa morta, fechou os olhos. O tenente-general viu-o enquanto acendia um dos charutos que o presidente Gabriel de Menezes tinha na sua charuteira e pensou, de si para si, Porra, pintainhos como aquele mais valia não sairem da capoeira.

– E agora general?,

perguntou-lhe um coronel que tinha entrado pela porta arrombada com parte da sua divisão.

– Agora esperamos.

sábado, julho 22, 2006

Cerejas como palavras

As cerejas são como as palavras. São melhores quando estão maduras - sem exageros -, quando têm uma cor rubra e suculenta. Sim, as cerejas são encarnadas como palavras. São redondas. Mas o que mais as faz como as palavras é, de certo, o facto de serem "frutos comestíveis". As cerejas são como as palavras - comem-se e saboreiam-se. Por esta ordem de raciocínios talvez as cerejas não sejam cerejas; talvez as cerejas sejam palavras.

Prefiro as palavras, porém - também se comem no Inverno.