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quinta-feira, agosto 31, 2006

O crime de Amália


Colheu a única rosa encarnada que crescia no meio da neve branca e calma que brilhava e rebrilhava sob o sol frio. Depois apercebeu.se do absurdo – as rosas encarnadas não crescem na neve – e acordou. Não havia neve lá fora, só uma chuva que caía na diagonal e que escorria do telhado num fio contínuo e transparente. Amália levantou-se e olhou pela janela. A estrada estava húmida, e a luz amarela dos candeeiros de rua reflectia-se no asfalto. Passavam poucos minutos das quatro da manhã. Faltam pelo menos três horas para a aurora. Amália pensou nisto e depois vestiu qualquer coisa à pressa antes de sair.

Não podia, porém, deixar de pensar como seria bonito ver rosas brotarem do meio da neve; e que nevasse em Lisboa; ou, ainda mais impossível, que crescessem em Lisboa rosas, por todo o lado, em todos os canteiros, em todos os passeios, plantadas no meio das estradas. A realidade é amarga, pensou Amália. A realidade é amarga – era isto que ela pensava quando parou diante da montra da livraria, e exposto ao centro, sem que se anunciasse o preço, Amália se deparou com um livro cujo título era Rosas no Meio da Neve.

Já só faltava um quarto de hora para as cinco da manhã. As mãos de Amália estavam abertas sobre a montra da livraria e depois aproximou também a face, aberta num sorriso quase infantil. Sentiu que precisava urgentemente daquele livro que a olhava à distância de escassos mílimetros de vidro, mas a loja não abriria pelo menos durante quatro horas. Afastou-se, olhou para os dois lados da rua, depois para trás, depois para baixo, depois para cima, para o céu e para a lua que estava escondida pelas nuvens negras de noite. Depois apanhou uma pedra, deu uns passos atrás e arremessou-a contra o vidro da montra, e dali o viu escancarar-se. Aproximou-se, pegou no livro com a mão esquerda e lançou-se rua abaixo.

Corria tão rápido como conseguia, pelo passeio do lado esquerdo. Virou à direita e depois em frente, e à esquerda, até que já se perdia e corria só por correr. Por fim, extenuada, caiu numa rua qualquer e encostou-se à parede. Começou a ler o livro com os primeiros raios de sol do amanhecer.

Às oito e meia da manhã, quando Amália passava da página 47 para a 48 passou por ela um veículo da polícia, que vinha de outras andanças. Estacionou na berma do passeio. O guarda tinha relacionado os dados. Assalto na livraria Luar às quatro e cinquenta e sete da manhã; a polícia chega ao local sete minutos depois das cinco e descobre que apenas um livro é extorquido; despreocupado um agente prepara-se para abandonar o serviço assim que chegue à esquadra e depara-se com um sujeito jovem, do género feminino sentada numa calçada e lendo compenetradamente um livro qualquer. Saiu do automóvel e dirigiu-se à jovem, pôs-lhe nos pulsos as algemas e disse:

– Está presa em nome da lei.

Amália viria depois a declarar em tribunal não que era inocente nem que o seu crime tinha outros desagravos que não aquele de que “certas emergências têm que ser imediatamente satisfeitas”.

segunda-feira, agosto 07, 2006

O atendedor de chamadas


Estás aí? Se estás atende. Por favor. Por favor! Não estás?... Deixa estar, eu digo-o de qualquer maneira.

Estou sentado na varanda, e vejo o mar ao fundo, escondido entre as telhas vermelhas que encabeçam as casas brancas, vejo o mar ao fundo diluir-se no céu. Ambos são azuis, percebes? E diluem-se um no outro...

Estou sozinho aqui. Estou sozinho porque me sinto mal e só, tanto me fazia que houvesse alguém ao meu lado ou não. A solidão não é uma evidência, é uma percepção. Podemos ter milhares de pessoas ao pé de nós e sentir-mo-nos sozinhos por causa de uma apenas.

Desculpa mas vou ter que fumar um cigarro. Importas-te? Não leves a mal, porque não é por mal que o faço. É talvez porque me sinta nervoso ou ansioso. Ou talvez seja apenas um gesto automático, irracional, o de abrir o maço de tabaco com a mão esquerda, pegar no cigarro entre dois dedos da mão direita, levá-lo à boca e acendê-lo com o isqueiro. Talvez seja instintivo o gesto de semicerrar os olhos quando sopro a primeira baforada de fumo que enevoa a paisagem por um instante e logo se dissolve no ar como se nunca tivesse existido.

Há uma cadeira vaga ao meu lado. Estou a imaginar-te ali sentada agora, os cabelos escorrendo pelos ombros como água de uma fonte, o sol dourando-te a face. O que me lembra de que estou sozinho. Esquece. Tudo me deprime. Pelo menos enquanto estiver aqui, tudo me deprime. Prefiro fugir. Vou descer para ir ao café. Ou à praia, não sei bem.

Sim, talvez já não tenha muito para dizer. Talvez a minha boca esteja seca de palavras. São desnecessárias as palavras. Estivesses tu aqui e diria que são mais do que desnecessárias, são parte de uma invenção obsoleta e trivial que só veio retirar complexidade à arte primitiva do olhar. O que eu quero dizer é que não quero dizer nada. Só olhar-te. Deixa-me olhar-te, peço-te. Nos olhos. Contemplá-los e inquiri-los, e explicar-me a eles de outra maneira... de outra maneira que agora não consigo...

Olha, já estou cá em baixo. São quatro da tarde, há muita gente a ir para a praia outra vez, vêm em grupos e conversam, riem-se de vez em quando, levam toalha aos ombros ou debaixo do braço, vestem fato de banho ou biquini, muitas vezes trazem uma sacola ou uma mochila ou algo que lhe faça a vez. Eu não gosto de praia. Nem sei porque estou aqui. Talvez tivesse a secreta esperança de te descobrir entre a multidão. Ou perder-me entre cocktails num desses bares ao pé da praia, numa qualquer noite de Verão, sempre com uma música aos berros a funcionar como anestesia.

Uma italiana faz favor. Não é contigo querida, desculpa-me. É com o empregado do café. Está um calor infernal, mas eu estou a precisar de um café. A ver se acordo. Já vamos a meio da tarde, já é tempo. Preciso desesperadamente de acordar.

Aiai...

Já chegaste?

Não?

Acho que vou ter que desligar, de qualquer maneira. Estou a ficar sem bateria. Mas foi bom. Estava mesmo a precisar disto. Eu sei que não te conheço de lado algum, mas estava mesmo a precisar disto. Sinto-me melhor, soube-me bem imaginar-te. E, enfim, quando marquei o número não sabia o que poderia vir a acontecer. Nunca se sabe.

quinta-feira, agosto 03, 2006

O último dia do presidente (parte 3 de 3)

Os militares, ou melhor, os militares que cabiam na largura da escada de uma vez, subiram até ao segundo andar, avançaram a passos largos no corredor e pararam a cinco metros da porta de entrada do gabinete de Gabriel de Menezes. O tenente-general voltou-se e disse-lhes numa voz grave, que era audível e autoritária sem ser um grito

– Agora trato eu do assunto.

Não era assim que estava combinado, pensou o coronel, mas esqueceu esses pormenores a bem da hierarquia do exército. O tenente-general, que era canhoto, retirou um revólver do coldre com a mão esquerda e pousou a mão direita na maçaneta.

Lá dentro esperava Gabriel de Menezes. Ouviu-os subir, ouviu a frase do tenente-general e permaneceu calmo. É o destino, pensou. E ele tinha de o enfrentar. Quando o tenente-general entrou, encontrou o presidente de costas para si, sentado na sua cadeira de couro. Havia uma garrafa de uísque de malte aberta e um copo vazio sobre a mesa. O auscultador do telefone não estava sobre o descanso, mas sobre a mesa. Gabriel de Menezes tinha certamente tentado telefonar quando se apercebeu de que a linha telefónica tinha sido cortada.

– Volta-te para mim. Vê-me nos olhos. Custa-te assim tanto mais do que a mim?

Gabriel de Menezes voltou-se para o tenente-general e olhou nos olhos. A calma do presidente deixou o oficial do exército completamente aterrado.

– Senta-te, por favor. Bebe um pouco de uísque.

– Não gosto de whisky.

– O que é que queres beber então?

– Não quero nada, o que é que te parece? Vim para terminar tudo, percebes, tudo! Aqui e agora!

– Se não queres nada senta-te então, por favor. Não te tomo muito tempo.

Ao tenente-general exasperava a insolência presidencial, mas ao mesmo tempo a face serena de Gabriel de Menezes levou-o a pensar que podia bem permitir ao morto um último desejo.

– Como é que está a mãe?

– Não sabe de nada. Deixei-a em Espanha, nas Canárias, achei que seria mais fácil assim. De qualquer das formas desde que o pai morreu que quase nunca sai de casa, não lê jornais, não fala com ninguém. Dúvido que acredite que estejas vivo.

– E tu como é que estás?

– Eu estou bem. Eu sei que tu não estás vivo.

Trocaram olhares.

– Hoje sonhei com um céu cor-de-laranja e soube que ia morrer.

– Tu sabias que ias morrer e sonhaste com um céu cor-de-laranja.

– Tenho a sensação de que se eu tivesse dito qualquer coisa diferente a seu tempo, tudo isto poderia ter acontecido de outra maneira.

– Tens a sensação certa,

disse o tenente-general. Disparou uma só bala. A cabeça de Gabriel de Menezes caiu sobre o tampo da mesa. O tenente-general beijou-lhe a nuca prostrada e depois saiu, devagar. Lá fora estava o impaciente coronel

– E agora general?

– Agora não sei.