Os militares, ou melhor, os militares que cabiam na largura da escada de uma vez, subiram até ao segundo andar, avançaram a passos largos no corredor e pararam a cinco metros da porta de entrada do gabinete de Gabriel de Menezes. O tenente-general voltou-se e disse-lhes numa voz grave, que era audível e autoritária sem ser um grito
– Agora trato eu do assunto.
Não era assim que estava combinado, pensou o coronel, mas esqueceu esses pormenores a bem da hierarquia do exército. O tenente-general, que era canhoto, retirou um revólver do coldre com a mão esquerda e pousou a mão direita na maçaneta.
Lá dentro esperava Gabriel de Menezes. Ouviu-os subir, ouviu a frase do tenente-general e permaneceu calmo. É o destino, pensou. E ele tinha de o enfrentar. Quando o tenente-general entrou, encontrou o presidente de costas para si, sentado na sua cadeira de couro. Havia uma garrafa de uísque de malte aberta e um copo vazio sobre a mesa. O auscultador do telefone não estava sobre o descanso, mas sobre a mesa. Gabriel de Menezes tinha certamente tentado telefonar quando se apercebeu de que a linha telefónica tinha sido cortada.
– Volta-te para mim. Vê-me nos olhos. Custa-te assim tanto mais do que a mim?
Gabriel de Menezes voltou-se para o tenente-general e olhou nos olhos. A calma do presidente deixou o oficial do exército completamente aterrado.
– Senta-te, por favor. Bebe um pouco de uísque.
– Não gosto de whisky.
– O que é que queres beber então?
– Não quero nada, o que é que te parece? Vim para terminar tudo, percebes, tudo! Aqui e agora!
– Se não queres nada senta-te então, por favor. Não te tomo muito tempo.
Ao tenente-general exasperava a insolência presidencial, mas ao mesmo tempo a face serena de Gabriel de Menezes levou-o a pensar que podia bem permitir ao morto um último desejo.
– Como é que está a mãe?
– Não sabe de nada. Deixei-a em Espanha, nas Canárias, achei que seria mais fácil assim. De qualquer das formas desde que o pai morreu que quase nunca sai de casa, não lê jornais, não fala com ninguém. Dúvido que acredite que estejas vivo.
– E tu como é que estás?
– Eu estou bem. Eu sei que tu não estás vivo.
Trocaram olhares.
– Hoje sonhei com um céu cor-de-laranja e soube que ia morrer.
– Tu sabias que ias morrer e sonhaste com um céu cor-de-laranja.
– Tenho a sensação de que se eu tivesse dito qualquer coisa diferente a seu tempo, tudo isto poderia ter acontecido de outra maneira.
– Tens a sensação certa,
disse o tenente-general. Disparou uma só bala. A cabeça de Gabriel de Menezes caiu sobre o tampo da mesa. O tenente-general beijou-lhe a nuca prostrada e depois saiu, devagar. Lá fora estava o impaciente coronel
– E agora general?
– Agora não sei.
1 comentário:
Bom, deixaste o conto com um final em aberto. Gostei como terminaste a primeira e a segunda parte. Gabriel Menezes... belo nome para um personagem.
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