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domingo, janeiro 14, 2007

Antes dos corvos negros caírem


Corvos negros voam em círculos cada vez mais pequenos e obstruem o sol claro. Em meu redor tudo é difuso. As pedras, as montanhas, a terra seca e arenosa, o pó. Sinto o meu corpo quente e cansado, mas sinto-o distante como se não fosse já parte de mim. Sinto-me ir. Sinto-me finalmente liberto de todos os espíritos que me perseguem e apagam a luz por onde eu passo e deixam apenas a escuridão. Já não vou ver campos amontoados de mortos, de balas perdidas, de lágrimas inconsequentes. Às vezes corre uma brisa que me afaga a face dorida mas o vento já não trás em si as suas notícias de destruição, é só uma brisa fresca e revigorante. O meu coração bate cada vez mais lentamente. Ontem, e desde há muito tempo, ele corria acelerado, mas agora abranda, finalmente. E o meu próximo sono vai ser descansado e duradouro, sem os pesadelos que tive que enfrentar e que agora esqueço. Para sempre.

Eu não sou ninguém. Ninguém se lembra do meu nome agora, nem ninguém se lembrará do meu nome amanhã. Vim combater a uma guerra que não é minha, mandado por pessoas que não me conhecem, que invocam razões que eu não conheço para me mandarem para aqui em seu nome. Nesta terra ninguém fala a minha língua porque se falar ou fugiu ou morreu ou foi encarcerado.

Sempre pensei que quando eu morresse pensaria na minha mulher e filhos e diria a um outro soldado, Diz à minha mulher e filhos que eu os amo muito, mas não, morri sem mulher nem filhos. Nem sequer pais ou irmãos ou amigos. O mais que me espanta no momento da minha morte é tudo o que eu podia ter amado. Os poemas que eu podia ter escrito. A paz que eu podia ter sentido no meu coração; ou a angústia da espera; ou as flores que eu podia ter cheirado; ou os dias que eu podia ter achado maravilhosos; ou os minutos que eu pudesse ter achado dolorosos. As emoções que podia ter tido e não tive.

Trouxeram-me para uma terra de ódio, onde a compaixão é confundida com a cobardia. Nenhum de nós se odeia verdadeiramente; verdadeiramente odiamos talvez quem nos manda aqui ou quem mandou os outros para nos combater a nós. Nenhum de nós se conhece sequer. Como se odeia alguém que não se conhece? Não desejo a morte a nenhuma dessas pessoas - dessas que se dizem meus inimigos - em particular, mas já as mandei a todas para o inferno várias vezes. Não é por elas, nem pelo país delas, que parece que queria invadir o nosso - ou talvez fosse o contrário - é por mim, que queria voltar para a tranquilidade da minha casa e aprender a amar. Vou morrer sem amar, sem ter amado um único ser vivo. Isso aflige-me. Porque sempre quis saber o que é o amor, aquele que lia em romances, e nas letras dos poetas, aquele que vinha apregoado na rádio e na televisão: o amor em todas as suas formas.

O sangue escorre-me da cabeça e do peito das pernas. Tusso. Na neblina do horizonte surge um homem (talvez ainda um jovem, numa guerra não se distingue entre os dois, têm todos a mesma idade, idade para matar). Tem olhos azuis e cabelo castanho e caminha com o passo cambaleante e decidido dos soldados mais fatigados e amedrontados. Os seus lábios estão distorcidos numa expressão de dor. De certeza que está ferido também. Quem o não está? A sombra dele cobre o meu corpo por inteiro, vejo-o melhor agora, neste instante. Pede-me desculpa na sua língua ininteligível, não o compreendo mas sei que pede desculpa. A lâmina da sua baioneta crava-se no meu abdómen uma e outra e outra vez.

Lagos de sangue cobrem o meu corpo e mancham a terra. Mesmo antes de morrer decido amar todo o mundo por igual - as plantas e as pessoas que, porventura ingenuamente, me desejaram o inferno e as outras que não sabem quem eu sou e mesmo assim me enviaram para este deserto repleto de horrores. Amo-os a todos. É a minha vingança. Morro com um sorriso conciliador, pouco tempo antes dos corvos negros caírem sobre o meu corpo putrefacto.