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sexta-feira, fevereiro 23, 2007

a história de Utopia


Utopia era o nome da cadela de Madalena.

Conheceram-se numa tarde de Outono. Naturalmente que nessa altura a cadela ainda não se chamava Utopia. Estava muito vento, nesse dia. As pessoas abriam guarda-chuvas e arrependiam-se logo a seguir. Durante algum tempo lutavam como podiam contra a inevitabilidade, mas, claro, inutilmente. Os guarda-chuvas viravam-se, faziam-se em fanicos em menos de nada e, quando finalmente as pessoas os davam como obsoletos, descobriam-se encharcadas dos pés à cabeça. Não demorou muito até que quase toda a gente na cidade estivesse convencida de que aquele não era um dia bom.

Madalena chegou a casa enterrada como podia na sua parka impermeável (que de pouco ou nada lhe serviu já que ficou ensopada na mesma) e quando abriu a porta da rua reparou que as mãos lhe tremiam. Entrou no prédio sem reparar na cadela que a seguiu, e também não se apercebeu dela no elevador, talvez porque a água da chuva se infiltrara já na roupa e inundara as botas, fazendo-a tremer incontrolavelmente com o frio. Madalena só reparou na supracitada cadela quando o animal se entregou à tarefa de expurgar de si os demónios do mau tempo, molhando tudo à sua volta, Madalena incluida - se é que ela o podia ficar ainda mais. Não era um dia Sim para Madalena, que estava decidida a ver-se livre da rafeira. Mas depois ganhou-lhe pena porque a cadela não arredou pé e a olhou olhos nos olhos com aquele ar de cachorro abandonado, que é o que ela efectivamente era. Deixou-a entrar, portanto, por compaixão, e baptizou-a de Utopia.

No começo Madalena e Utopia não tiveram uma relação pacífica. Quando Madalena acordava, às seis e meia da manhã, só encontrava à beira da sua cama o chinelo esquerdo. Então ia, meia descalça, à cozinha, onde disputava o chinelo direito com a cadela que estava confortavelmente instalada a um canto, roendo o dito como se se tratasse de um biscoito. Um dia Madalena voltou do trabalho e Utopia apareceu aos saltos, como de costume, mas trazendo os sapatos favoritos de Madalena presos na boca. Não foram só esses: de caminho entre a porta de entrada e o quarto Madalena encontrou no chão do corredor um dizimado exército de sapatos. Metade do que havia de calçado no seu armário guarda-roupa estava inutilizado. Reprimiu um suspiro de horror.

Foi por causa destas traquinices que Madalena começou a arrumar os seus sapatos na prateleira superior do armário e Utopia passou a estar trancada na cozinha quando a dona ia para o trabalho.

Mas Utopia cresceu. Tornou-se mais dócil. Depois de dois anos Utopia já tinha superado o seu apetite por sapatos. Quase todos os amigos de Madalena bem como algumas das suas companhias ocasionais já haviam sido cheirados e lambidos por ela. Madalena acreditava sempre na palavra de Utopia e desconfiava sempre das pessoas que a faziam ladrar. Habituara-se a receber de Utopia os latidos compreensivos sempre que se sentia abatida. E a afagar-lhe o pêlo e a vê-la buscar bolas de ténis e a passeá-la sempre que se sentia enfastiada. Com o tempo perdoou-lhe o caso do homicídio em série de sapatos.

Acabou por ter tanta confiança no bom comportamento de Utopia que já não a obrigava a levar trela quando iam em passeio. As crianças gostavam, aproximavam-se, brincavam com a cadela e riam-se sempre muito quando ela fazia de morta e depois acordava repentinamente, lambedo-lhes os joelhos.

Naquele dia, como normalmente, Utopia corria pela rua abaixo, quatro ou cinco metros à frente da dona. Era no tempo em que a única árvore da rua floria. Na esquina, ao fundo da rua, surgiu um cão. Era um cão negro e grande, tão negro e tão grande que o pequeno sol do mundo de cadela de Utopia se eclipsou nesse mesmo instante. Assustou-se, os seus olhos castanhos duplicaram de tamanho e reflectidos na pupila o cão, grande e negro. O cão ladrou-lhe; depois abriu a sua boca feroz e fez Utopia muito pequenina na sua dentadura gigantesca. Madalena tremia a um canto, mas o cão deu meia volta e perdeu-se de vista, longe na súbita noite de tempestade, que prometia Inverno em plena Primavera. Começou a chover nesse mesmo instante, e Madalena arrependeu-se de não confiar em guarda-chuvas. Estava ajoelhada, junto a Utopia e sobre elas pesava o silêncio da morte.

Madalena foi enterrar Utopia à sombra da àrvore que floria. Tinha-se habituado a viver com Utopia - agora tinha que reaprender a viver sem ela.