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segunda-feira, outubro 08, 2007

deram chuva para amanhã (1)

As noites de novembro seriam bem mais frias se não fosse a harmónica de Sebastião, com o seu som delicadamente áspero a vaguear pelas ruas desertas onde os poetas procuram abrigo, algures entre os blues e o fado de Lisboa. Nunca ninguém vira Sebastião sem a sua harmónica azul. Completavam-se, estendiam-se: separados não existiam, juntos tornavam-se num gigante mitológico que viajava no limbo entre os sonhos e a realidade.

Como Sebastião se tornava especialmente imprescindível nas noites sem lua! Com o seu blusão negro, sentado no passeio, encostado a uma parede suja, repleta de graffitis e de vários cartazes rasgados a anúnciar a mesma peça de teatro,fora de cena havia três anos. De olhos fechados, a guiar com os seus dedos finos e brancos a harmónica azul, que brilhava metalicamente sob a luz falaciosa do único candeeiro da rua.

Muita gente que deambulava pelas artérias e arteríolas da cidade descobrira Sebastião e a sua harmónica quando já se notava o burburinho do dia. Uns vinham de bares, atraídos pelo contraste de ritmos e volumes, outros regressavam do leito dos amantes e muitas vezes esses traziam uma capacidade inusual de se sentir agradados com as coisas à sua volta. Uns poucos apareciam a pedir conforto após uma noite de insónias, e esses ouviam o som da harmónica mas observavam-se a si próprios, num acto de introspecção.

Os espaços de escuridão desabitados em volta de Sebastião iam sendo preenchidos por rostos mais ou menos conhecidos. Cada um tinha a sua razão muito própria para ali estar, e era assim que Sebastião os diferia. De vez em quando deixava uma nota ficar suspensa no ar até se desfazer, como uma bola de sabão soprada por uma criança, e depois abria bem os olhos e observava os rostos que o rodeavam, tentando descobrir o que os motivava a estar ali.

Seria sempre um mistério. Todas aquelas pessoas lhe eram estranhas, e no entanto havia algo imperceptível que os unia. Era difícil compreender o que seria, mas todos eles tinham algo em comum. O que será, o que será, pensava Sebastião, com o bocal da harmónica ainda quente, ainda colado aos seus lábios, perscrutando faces. Quem vê caras, não vê corações. Quem vê olhos talvez veja, ou quem ouve música. Não, os corações não se vêem, sentem-se. Ouvem-se, quanto muito, quando encostamos a cabeça a um peito e adormecemos.

Seria a música que os unia, perguntou-se Sebastião numa certa sexta-feira de outubro, quando a chuva caía de mansinho, como um segredo murmurado ao ouvido. Nessa noite (não tarde, talvez passasse um pouco das duas da manhã) aparecera um jovem rapaz caboverdiano. O silêncio dos seus passos era tão impossível que Sebastião quase nem conseguia continuar a tocar. Sem fazer cerimónia ele sentou-se, de pernas cruzadas e puxou para si uma tábua de madeira que estava encostada ao contentor do lixo e começou a acompanhar a música de Sebastião com o batuque. Seria a música que os unia? Sebastião olhou o rapaz olhos nos olhos e ele correspondeu. Fitaram-se longamente enquanto a música prosseguia, acompanhada pela som pálido da chuva. Mas não era a música o que os ligava era algo de muito mais profundo e ininteligível – a música era um meio de expressão, não a mensagem.

Os raios de sol do primeiro domingo de novembro começavam a definir-se por entre as silhuetas paralelipipedícas dos edifícios. Sebastião guardou a harmónica no bolso do blusão e despareceu nos ruídos de uma cidade que se levanta. Enquanto o via partir, Lia desejava secretamente que também os dias fossem menos frios.