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quarta-feira, julho 26, 2006

O último dia do presidente (parte 1 de 3)

Quando o vieram matar entraram pela porta das traseiras. O que os militares veriam mais tarde como um gesto de descrição vi-o o estadista como mais uma mostra de traição. Ele estava sentado na sua poltrona de couro, virado de costas para a secretária e de frente para aquela janela larga com vista para a praça. Lá fora fazia um calor tropical. O sol ardia tão intensamente que quase feria a vista. A multidão principiava a ajuntar-se à volta do edifício. Gabriel de Menezes acordou às cinco e meia da manhã, como era seu hábito, e soube logo que ia morrer. São poucos os que o podem saber de antemão, pensou, enquanto se levantava da cama. Vestiu o seu melhor fato, a sua melhor camisa, a sua melhor gravata. Preparou aquele dia com a dignidade que exigem os momentos especiais.

Apesar de tudo decidiu manter-se calmo e discreto. Não alertou a mulher, deixou-a a dormir, agarrada à sua almofada branca, sem saber o que se passava. Ficou apenas sorrindo da porta para ela durante alguns segundos. Uma das características mais trágicas, e mais mágicas também, do ser humano é esta de achar as coisas mais belas quando se aproximam do fim. Ao mesmo tempo que se guarda uma satisfação excepcional também se tem uma enorme sensação de perda.

A última refeição de Gabriel de Menezes não foi um banquete, foi um copo de leite com mel que ele bebeu sem pressas na cozinha. Àquela hora, seis da manhã, ainda ninguém tinha reparado na importância excepcional daquele dia. Aliás, se Gabriel de Menezes sabia que ia morrer era porque sabia analisar os sinais óbvios que nos são dados, como a avó lhes costumava chamar – como sonhar com céus cor-de-laranja. Não são de bom presságio os céus cor-de-laranja, e a avó tinha-lhe ensinado que os sonhos têm sempre razão, de uma maneira que nem Freud conseguiu deslindar. Por esta e outras razões lembrou-se Gabriel de Menezes da avó enquanto bebia o leite em pequenos goles. Hoje em dia a avó dependia de uma cadeira de rodas para se mover, e estava num hospital psiquiátrico, numa casa de loucos, onde sempre pertenceu, diga-se, porque nunca pensou como os outros. Mas Gabriel de Menezes preferia imaginá-la em pé ou sentada à beira da lareira, a sorrir, contando histórias tão fantásticas que pareciam genuinamente reais e ensinando-lhe que o destino não se contraria, enfrenta-se. Era o que Gabriel estava decidido a fazer quando subiu as escadas e entrou no gabinete, sentindo a calma e a clareza de espírito dos heróis impotentes.

A mulher, Maria de Menezes, acordou pouco antes das sete, atormentada pelos vozes que, lá fora, se iam multiplicando e crescendo. Afastou os cortinados de linho para ver que os homens que iam matar o marido eram muito mais do que os guardas que o protegiam. Gritaram qualquer coisa sobre rendição pelo megafone, mas da casa ninguém respondeu. Gritaram o mesmo outra vez, mais devagar e mais alto, mais perceptível também, mas ninguém respondeu. E, enquanto exigiam a rendição pela terceira vez, os militares arrombaram a porta das traseiras e entraram na casa de Gabriel de Menezes. Maria de Menezes saiu a correr do quarto, mas antes de começar a subir a escada um militar ordenou-lhe que parasse. Ela estacou, mais pela surpresa que pela ordem. Ficou a olhá-los com os seus grandes olhos castanhos cheios de incompreensão. Esboçou um movimento.

– Pare ou vai arrepender-se!,

gritou-lhe o tenente-general. Ela não parou, decidiu antes lançar-se sobre as escadas a grande velocidade e vários soldados, com os nervosos dedos no gatilho, dispararam sobre ela. Maria de Menezes morreu com a primeira bala, sem ter tempo para se arrepender como previra o tenente-general, e o sangue escorreu violentamente vermelho sobre os degraus de mármore branco. Um dos soldados, um recruta acabado de sair da instrução, que nunca tinha visto uma pessoa morta, fechou os olhos. O tenente-general viu-o enquanto acendia um dos charutos que o presidente Gabriel de Menezes tinha na sua charuteira e pensou, de si para si, Porra, pintainhos como aquele mais valia não sairem da capoeira.

– E agora general?,

perguntou-lhe um coronel que tinha entrado pela porta arrombada com parte da sua divisão.

– Agora esperamos.

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