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quinta-feira, agosto 03, 2006

O último dia do presidente (parte 3 de 3)

Os militares, ou melhor, os militares que cabiam na largura da escada de uma vez, subiram até ao segundo andar, avançaram a passos largos no corredor e pararam a cinco metros da porta de entrada do gabinete de Gabriel de Menezes. O tenente-general voltou-se e disse-lhes numa voz grave, que era audível e autoritária sem ser um grito

– Agora trato eu do assunto.

Não era assim que estava combinado, pensou o coronel, mas esqueceu esses pormenores a bem da hierarquia do exército. O tenente-general, que era canhoto, retirou um revólver do coldre com a mão esquerda e pousou a mão direita na maçaneta.

Lá dentro esperava Gabriel de Menezes. Ouviu-os subir, ouviu a frase do tenente-general e permaneceu calmo. É o destino, pensou. E ele tinha de o enfrentar. Quando o tenente-general entrou, encontrou o presidente de costas para si, sentado na sua cadeira de couro. Havia uma garrafa de uísque de malte aberta e um copo vazio sobre a mesa. O auscultador do telefone não estava sobre o descanso, mas sobre a mesa. Gabriel de Menezes tinha certamente tentado telefonar quando se apercebeu de que a linha telefónica tinha sido cortada.

– Volta-te para mim. Vê-me nos olhos. Custa-te assim tanto mais do que a mim?

Gabriel de Menezes voltou-se para o tenente-general e olhou nos olhos. A calma do presidente deixou o oficial do exército completamente aterrado.

– Senta-te, por favor. Bebe um pouco de uísque.

– Não gosto de whisky.

– O que é que queres beber então?

– Não quero nada, o que é que te parece? Vim para terminar tudo, percebes, tudo! Aqui e agora!

– Se não queres nada senta-te então, por favor. Não te tomo muito tempo.

Ao tenente-general exasperava a insolência presidencial, mas ao mesmo tempo a face serena de Gabriel de Menezes levou-o a pensar que podia bem permitir ao morto um último desejo.

– Como é que está a mãe?

– Não sabe de nada. Deixei-a em Espanha, nas Canárias, achei que seria mais fácil assim. De qualquer das formas desde que o pai morreu que quase nunca sai de casa, não lê jornais, não fala com ninguém. Dúvido que acredite que estejas vivo.

– E tu como é que estás?

– Eu estou bem. Eu sei que tu não estás vivo.

Trocaram olhares.

– Hoje sonhei com um céu cor-de-laranja e soube que ia morrer.

– Tu sabias que ias morrer e sonhaste com um céu cor-de-laranja.

– Tenho a sensação de que se eu tivesse dito qualquer coisa diferente a seu tempo, tudo isto poderia ter acontecido de outra maneira.

– Tens a sensação certa,

disse o tenente-general. Disparou uma só bala. A cabeça de Gabriel de Menezes caiu sobre o tampo da mesa. O tenente-general beijou-lhe a nuca prostrada e depois saiu, devagar. Lá fora estava o impaciente coronel

– E agora general?

– Agora não sei.

1 comentário:

K disse...

Bom, deixaste o conto com um final em aberto. Gostei como terminaste a primeira e a segunda parte. Gabriel Menezes... belo nome para um personagem.