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quinta-feira, julho 27, 2006

O último dia do presidente (parte 2 de 3)

Em frente da fachada do edíficio era o caos. Aos guardas da casa do presidente tinha sido dada ordem para não disparar em circunstância alguma, o que facilitou a tarefa aos invasores, que até contavam com alguma resistência. O general tomou do megafone e gritou ao presidente que se ele não se rendesse em dez minutos os soldados tomariam o edifício à força e não o deixariam vivo. Ao general não preocupava a saúde de Gabriel de Menezes. Afinal de contas o que ele pretendia era uma submissão, uma admissão pública de culpa, uma transferência de poderes. Reclamava para as suas forças totalitárias uma legitimidade à lei da força. Mas a espera impacientava-o, ainda para mais com aquele calor infernal que o fazia suar tanto.

No andar de cima Gabriel de Menezes tinha a calma e a sabedoria dos que estão à beira da morte e o sabem. Percebeu que para o general passar das ameaças teria que lhe explicar que não estava disposto a entregar-se. Por isso levantou-se, abriu a janela e gritou

– Liberdade!,

um acto que havia de ser descrito durante duas décadas nos panfletos clandestinos como um apelo à democracia e mais tarde seria descrito como uma lenda infundada nos livros de história. Fechou outra vez a janela com o sorriso leve como o do orgulho de um pai à beira da morte de um seu filho. Depois pensou no seu governo, de como tudo parecia traçado desde o ínicio, desde a tomada de posse. Lembrou-se do gato azul escuro que viu da janela do automóvel em que seguia nesse dia, e como logo percebeu que iria viver para sempre a angústia dos condenados. O povo, deprimido e frustrado, via a sua eleição como mais um capítulo na história de uma democracia que lhe dava muito pouco. E tudo o que o presidente fizesse em contrário era depreciado e desvalorizado.

Lá fora acumulava-se gente. Uns poucos dos democratas mais curiosos juntaram-se à multidão anónima e fingiram-se do lado do inimigo, muitos estavam do lado dos revolucionários mas a maioria ainda que pensando estar de acordo com a insurreição, estava, em verdade, somente confusa e enganada. Quando ouviram a palavra Liberdade todos se calaram por segundos, depois os que estavam mesmo do lado da revolução gritaram injúrias. O general olhou as suas tropas caladas, olhou a grande parte de pessoas que parecia pensar no valor daquela palavra e, sentindo-se súbitamente traído pelo presidente, disse-o Filho da puta num sussurro. Ficou largos minutos sem reacção, depois percebeu que não tinha outra hipótese que não acabar rápido com assunto e fez um sinal a um cabo que deu a volta a casa para vir murmurar ao tenente-general que era mesmo para avançar. O coronel perguntou

– E agora general?

A face do tenente-general exprimiu a sua impaciência com o coronel, mas depois de dois segundos de silêncio respondeu-lhe

– Agora avançamos.

quarta-feira, julho 26, 2006

O último dia do presidente (parte 1 de 3)

Quando o vieram matar entraram pela porta das traseiras. O que os militares veriam mais tarde como um gesto de descrição vi-o o estadista como mais uma mostra de traição. Ele estava sentado na sua poltrona de couro, virado de costas para a secretária e de frente para aquela janela larga com vista para a praça. Lá fora fazia um calor tropical. O sol ardia tão intensamente que quase feria a vista. A multidão principiava a ajuntar-se à volta do edifício. Gabriel de Menezes acordou às cinco e meia da manhã, como era seu hábito, e soube logo que ia morrer. São poucos os que o podem saber de antemão, pensou, enquanto se levantava da cama. Vestiu o seu melhor fato, a sua melhor camisa, a sua melhor gravata. Preparou aquele dia com a dignidade que exigem os momentos especiais.

Apesar de tudo decidiu manter-se calmo e discreto. Não alertou a mulher, deixou-a a dormir, agarrada à sua almofada branca, sem saber o que se passava. Ficou apenas sorrindo da porta para ela durante alguns segundos. Uma das características mais trágicas, e mais mágicas também, do ser humano é esta de achar as coisas mais belas quando se aproximam do fim. Ao mesmo tempo que se guarda uma satisfação excepcional também se tem uma enorme sensação de perda.

A última refeição de Gabriel de Menezes não foi um banquete, foi um copo de leite com mel que ele bebeu sem pressas na cozinha. Àquela hora, seis da manhã, ainda ninguém tinha reparado na importância excepcional daquele dia. Aliás, se Gabriel de Menezes sabia que ia morrer era porque sabia analisar os sinais óbvios que nos são dados, como a avó lhes costumava chamar – como sonhar com céus cor-de-laranja. Não são de bom presságio os céus cor-de-laranja, e a avó tinha-lhe ensinado que os sonhos têm sempre razão, de uma maneira que nem Freud conseguiu deslindar. Por esta e outras razões lembrou-se Gabriel de Menezes da avó enquanto bebia o leite em pequenos goles. Hoje em dia a avó dependia de uma cadeira de rodas para se mover, e estava num hospital psiquiátrico, numa casa de loucos, onde sempre pertenceu, diga-se, porque nunca pensou como os outros. Mas Gabriel de Menezes preferia imaginá-la em pé ou sentada à beira da lareira, a sorrir, contando histórias tão fantásticas que pareciam genuinamente reais e ensinando-lhe que o destino não se contraria, enfrenta-se. Era o que Gabriel estava decidido a fazer quando subiu as escadas e entrou no gabinete, sentindo a calma e a clareza de espírito dos heróis impotentes.

A mulher, Maria de Menezes, acordou pouco antes das sete, atormentada pelos vozes que, lá fora, se iam multiplicando e crescendo. Afastou os cortinados de linho para ver que os homens que iam matar o marido eram muito mais do que os guardas que o protegiam. Gritaram qualquer coisa sobre rendição pelo megafone, mas da casa ninguém respondeu. Gritaram o mesmo outra vez, mais devagar e mais alto, mais perceptível também, mas ninguém respondeu. E, enquanto exigiam a rendição pela terceira vez, os militares arrombaram a porta das traseiras e entraram na casa de Gabriel de Menezes. Maria de Menezes saiu a correr do quarto, mas antes de começar a subir a escada um militar ordenou-lhe que parasse. Ela estacou, mais pela surpresa que pela ordem. Ficou a olhá-los com os seus grandes olhos castanhos cheios de incompreensão. Esboçou um movimento.

– Pare ou vai arrepender-se!,

gritou-lhe o tenente-general. Ela não parou, decidiu antes lançar-se sobre as escadas a grande velocidade e vários soldados, com os nervosos dedos no gatilho, dispararam sobre ela. Maria de Menezes morreu com a primeira bala, sem ter tempo para se arrepender como previra o tenente-general, e o sangue escorreu violentamente vermelho sobre os degraus de mármore branco. Um dos soldados, um recruta acabado de sair da instrução, que nunca tinha visto uma pessoa morta, fechou os olhos. O tenente-general viu-o enquanto acendia um dos charutos que o presidente Gabriel de Menezes tinha na sua charuteira e pensou, de si para si, Porra, pintainhos como aquele mais valia não sairem da capoeira.

– E agora general?,

perguntou-lhe um coronel que tinha entrado pela porta arrombada com parte da sua divisão.

– Agora esperamos.

sábado, julho 22, 2006

Cerejas como palavras

As cerejas são como as palavras. São melhores quando estão maduras - sem exageros -, quando têm uma cor rubra e suculenta. Sim, as cerejas são encarnadas como palavras. São redondas. Mas o que mais as faz como as palavras é, de certo, o facto de serem "frutos comestíveis". As cerejas são como as palavras - comem-se e saboreiam-se. Por esta ordem de raciocínios talvez as cerejas não sejam cerejas; talvez as cerejas sejam palavras.

Prefiro as palavras, porém - também se comem no Inverno.