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sexta-feira, junho 15, 2007

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A estação de metro está apinhada de gente. Quando o mundo está tão cheio de pessoas, não damos por mais uma, menos uma, há um equilíbrio dinâmico que não nos diz nada. Perto do olhar, longe do coração. Cada um de nós tem o seu mundo dentro do mundo. O meu mundo é daltónico, manco e maneta, mas é o meu mundo. Há mais luas, há mais eclipses neste mundo do que em outros mundos, mas é este o meu mundo.
O mundo de Lia gira incontrolavelmente. O mundo de Lia é incostante, dilata-se e estreita-se. O chão do mundo de Lia escapasse-lhe sob os pés e ela quase cai, mas apoia-se numa parede. Lia cerra os dentes, fecha os punhos. Dói-lhe a cabeça.
Doem-lhe todas as vozes em uníssono. As do passado, as do presente, aquelas que ela inventou em sonhos. A mãe com as suas palavras enroladas como cigarrilhas, os seus francesismos. Chardonnay, um copo de champanhe que cai e toca o chão e se estilhaça. O som de um coração apertado contra o peito. Gritos, passos, um soalho de madeira que range. Vendedores que apregoam laranjas. Adolescentes que se riem muito alto. O retumbante silêncio dos viajantes solitários. Um crescendo de violinos. Todas as vozes, agora, sob a matuta de um maestro de fraque negro, vamos lá, as contraltos, os barítonos, as sopranos, os tenores, todos, um clamor que se eleva entre o burburinho do fim de tarde.
No confuso mundo de Lia todos os outros mundos colapsam. O próprio tecto ameaça desabar. As pessoas esvaiem-se no ar como pó. Já não há muito que se mantenha em pé e intacto. Ela quer pedir ajuda mas não se lembra de como se pronuncia a palavra. Esqueceu-se da linguagem. Como se, quando ditas, as palavras não fizessem sentido.
O maestro no mundo de Lia tem um súbito arrebato de gestos, a mão que segura a batuta cresce, cresce, aponta os violinistas ocultos. Só pode querer dizer que antigimos o clímax do espectáculo. O rosnar da multidão parece quase um Aleluia, só que mais triste e obscuro. Os olhos de Lia, cinzentos como mares em dias de tempestade, desabam em lágrimas que inundam as faces. Como um pião de madeira, o mundo de Lia deixa gradualmente de rodar. Com um movimento redondo da mão esquerda o maestro cala vozes e orquestra. Agora o mundo de Lia é só ela. Só ela, a escuridão e um cenário apocalíptico.

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