segunda-feira, setembro 25, 2006
A cor do rio
quinta-feira, agosto 31, 2006
segunda-feira, agosto 07, 2006
quinta-feira, agosto 03, 2006
O último dia do presidente (parte 3 de 3)
Os militares, ou melhor, os militares que cabiam na largura da escada de uma vez, subiram até ao segundo andar, avançaram a passos largos no corredor e pararam a cinco metros da porta de entrada do gabinete de Gabriel de Menezes. O tenente-general voltou-se e disse-lhes numa voz grave, que era audível e autoritária sem ser um grito
– Agora trato eu do assunto.
Não era assim que estava combinado, pensou o coronel, mas esqueceu esses pormenores a bem da hierarquia do exército. O tenente-general, que era canhoto, retirou um revólver do coldre com a mão esquerda e pousou a mão direita na maçaneta.
Lá dentro esperava Gabriel de Menezes. Ouviu-os subir, ouviu a frase do tenente-general e permaneceu calmo. É o destino, pensou. E ele tinha de o enfrentar. Quando o tenente-general entrou, encontrou o presidente de costas para si, sentado na sua cadeira de couro. Havia uma garrafa de uísque de malte aberta e um copo vazio sobre a mesa. O auscultador do telefone não estava sobre o descanso, mas sobre a mesa. Gabriel de Menezes tinha certamente tentado telefonar quando se apercebeu de que a linha telefónica tinha sido cortada.
– Volta-te para mim. Vê-me nos olhos. Custa-te assim tanto mais do que a mim?
Gabriel de Menezes voltou-se para o tenente-general e olhou nos olhos. A calma do presidente deixou o oficial do exército completamente aterrado.
– Senta-te, por favor. Bebe um pouco de uísque.
– Não gosto de whisky.
– O que é que queres beber então?
– Não quero nada, o que é que te parece? Vim para terminar tudo, percebes, tudo! Aqui e agora!
– Se não queres nada senta-te então, por favor. Não te tomo muito tempo.
Ao tenente-general exasperava a insolência presidencial, mas ao mesmo tempo a face serena de Gabriel de Menezes levou-o a pensar que podia bem permitir ao morto um último desejo.
– Como é que está a mãe?
– Não sabe de nada. Deixei-a em Espanha, nas Canárias, achei que seria mais fácil assim. De qualquer das formas desde que o pai morreu que quase nunca sai de casa, não lê jornais, não fala com ninguém. Dúvido que acredite que estejas vivo.
– E tu como é que estás?
– Eu estou bem. Eu sei que tu não estás vivo.
Trocaram olhares.
– Hoje sonhei com um céu cor-de-laranja e soube que ia morrer.
– Tu sabias que ias morrer e sonhaste com um céu cor-de-laranja.
– Tenho a sensação de que se eu tivesse dito qualquer coisa diferente a seu tempo, tudo isto poderia ter acontecido de outra maneira.
– Tens a sensação certa,
disse o tenente-general. Disparou uma só bala. A cabeça de Gabriel de Menezes caiu sobre o tampo da mesa. O tenente-general beijou-lhe a nuca prostrada e depois saiu, devagar. Lá fora estava o impaciente coronel
– E agora general?
– Agora não sei.
quinta-feira, julho 27, 2006
O último dia do presidente (parte 2 de 3)
Em frente da fachada do edíficio era o caos. Aos guardas da casa do presidente tinha sido dada ordem para não disparar em circunstância alguma, o que facilitou a tarefa aos invasores, que até contavam com alguma resistência. O general tomou do megafone e gritou ao presidente que se ele não se rendesse em dez minutos os soldados tomariam o edifício à força e não o deixariam vivo. Ao general não preocupava a saúde de Gabriel de Menezes. Afinal de contas o que ele pretendia era uma submissão, uma admissão pública de culpa, uma transferência de poderes. Reclamava para as suas forças totalitárias uma legitimidade à lei da força. Mas a espera impacientava-o, ainda para mais com aquele calor infernal que o fazia suar tanto.
No andar de cima Gabriel de Menezes tinha a calma e a sabedoria dos que estão à beira da morte e o sabem. Percebeu que para o general passar das ameaças teria que lhe explicar que não estava disposto a entregar-se. Por isso levantou-se, abriu a janela e gritou
– Liberdade!,
um acto que havia de ser descrito durante duas décadas nos panfletos clandestinos como um apelo à democracia e mais tarde seria descrito como uma lenda infundada nos livros de história. Fechou outra vez a janela com o sorriso leve como o do orgulho de um pai à beira da morte de um seu filho. Depois pensou no seu governo, de como tudo parecia traçado desde o ínicio, desde a tomada de posse. Lembrou-se do gato azul escuro que viu da janela do automóvel em que seguia nesse dia, e como logo percebeu que iria viver para sempre a angústia dos condenados. O povo, deprimido e frustrado, via a sua eleição como mais um capítulo na história de uma democracia que lhe dava muito pouco. E tudo o que o presidente fizesse em contrário era depreciado e desvalorizado.
Lá fora acumulava-se gente. Uns poucos dos democratas mais curiosos juntaram-se à multidão anónima e fingiram-se do lado do inimigo, muitos estavam do lado dos revolucionários mas a maioria ainda que pensando estar de acordo com a insurreição, estava, em verdade, somente confusa e enganada. Quando ouviram a palavra Liberdade todos se calaram por segundos, depois os que estavam mesmo do lado da revolução gritaram injúrias. O general olhou as suas tropas caladas, olhou a grande parte de pessoas que parecia pensar no valor daquela palavra e, sentindo-se súbitamente traído pelo presidente, disse-o Filho da puta num sussurro. Ficou largos minutos sem reacção, depois percebeu que não tinha outra hipótese que não acabar rápido com assunto e fez um sinal a um cabo que deu a volta a casa para vir murmurar ao tenente-general que era mesmo para avançar. O coronel perguntou
– E agora general?
A face do tenente-general exprimiu a sua impaciência com o coronel, mas depois de dois segundos de silêncio respondeu-lhe
– Agora avançamos.
quarta-feira, julho 26, 2006
O último dia do presidente (parte 1 de 3)
Quando o vieram matar entraram pela porta das traseiras. O que os militares veriam mais tarde como um gesto de descrição vi-o o estadista como mais uma mostra de traição. Ele estava sentado na sua poltrona de couro, virado de costas para a secretária e de frente para aquela janela larga com vista para a praça. Lá fora fazia um calor tropical. O sol ardia tão intensamente que quase feria a vista. A multidão principiava a ajuntar-se à volta do edifício. Gabriel de Menezes acordou às cinco e meia da manhã, como era seu hábito, e soube logo que ia morrer. São poucos os que o podem saber de antemão, pensou, enquanto se levantava da cama. Vestiu o seu melhor fato, a sua melhor camisa, a sua melhor gravata. Preparou aquele dia com a dignidade que exigem os momentos especiais.
Apesar de tudo decidiu manter-se calmo e discreto. Não alertou a mulher, deixou-a a dormir, agarrada à sua almofada branca, sem saber o que se passava. Ficou apenas sorrindo da porta para ela durante alguns segundos. Uma das características mais trágicas, e mais mágicas também, do ser humano é esta de achar as coisas mais belas quando se aproximam do fim. Ao mesmo tempo que se guarda uma satisfação excepcional também se tem uma enorme sensação de perda.
A última refeição de Gabriel de Menezes não foi um banquete, foi um copo de leite com mel que ele bebeu sem pressas na cozinha. Àquela hora, seis da manhã, ainda ninguém tinha reparado na importância excepcional daquele dia. Aliás, se Gabriel de Menezes sabia que ia morrer era porque sabia analisar os sinais óbvios que nos são dados, como a avó lhes costumava chamar – como sonhar com céus cor-de-laranja. Não são de bom presságio os céus cor-de-laranja, e a avó tinha-lhe ensinado que os sonhos têm sempre razão, de uma maneira que nem Freud conseguiu deslindar. Por esta e outras razões lembrou-se Gabriel de Menezes da avó enquanto bebia o leite em pequenos goles. Hoje em dia a avó dependia de uma cadeira de rodas para se mover, e estava num hospital psiquiátrico, numa casa de loucos, onde sempre pertenceu, diga-se, porque nunca pensou como os outros. Mas Gabriel de Menezes preferia imaginá-la em pé ou sentada à beira da lareira, a sorrir, contando histórias tão fantásticas que pareciam genuinamente reais e ensinando-lhe que o destino não se contraria, enfrenta-se. Era o que Gabriel estava decidido a fazer quando subiu as escadas e entrou no gabinete, sentindo a calma e a clareza de espírito dos heróis impotentes.
A mulher, Maria de Menezes, acordou pouco antes das sete, atormentada pelos vozes que, lá fora, se iam multiplicando e crescendo. Afastou os cortinados de linho para ver que os homens que iam matar o marido eram muito mais do que os guardas que o protegiam. Gritaram qualquer coisa sobre rendição pelo megafone, mas da casa ninguém respondeu. Gritaram o mesmo outra vez, mais devagar e mais alto, mais perceptível também, mas ninguém respondeu. E, enquanto exigiam a rendição pela terceira vez, os militares arrombaram a porta das traseiras e entraram na casa de Gabriel de Menezes. Maria de Menezes saiu a correr do quarto, mas antes de começar a subir a escada um militar ordenou-lhe que parasse. Ela estacou, mais pela surpresa que pela ordem. Ficou a olhá-los com os seus grandes olhos castanhos cheios de incompreensão. Esboçou um movimento.
– Pare ou vai arrepender-se!,
gritou-lhe o tenente-general. Ela não parou, decidiu antes lançar-se sobre as escadas a grande velocidade e vários soldados, com os nervosos dedos no gatilho, dispararam sobre ela. Maria de Menezes morreu com a primeira bala, sem ter tempo para se arrepender como previra o tenente-general, e o sangue escorreu violentamente vermelho sobre os degraus de mármore branco. Um dos soldados, um recruta acabado de sair da instrução, que nunca tinha visto uma pessoa morta, fechou os olhos. O tenente-general viu-o enquanto acendia um dos charutos que o presidente Gabriel de Menezes tinha na sua charuteira e pensou, de si para si, Porra, pintainhos como aquele mais valia não sairem da capoeira.
– E agora general?,
perguntou-lhe um coronel que tinha entrado pela porta arrombada com parte da sua divisão.
– Agora esperamos.
sábado, julho 22, 2006
Cerejas como palavras
Prefiro as palavras, porém - também se comem no Inverno.